O JOGO DO DINHEIRO NA FAMILIA EMPRESÁRIA E NA EMPRESA FAMILIAR


Por Thomas Michael Lanz (*)

Na década de 80, acadêmicos de Haward, Estados Unidos, elaboraram e traduziram, num esquema gráfico, uma representação muito interessante do que vinha a ser uma Empresa Familiar. Tagiuri e Davis mostraram que, em essência e para fins didáticos, a Empresa Familiar era constituída de três subsistemas: a família, a propriedade e a empresa. Tanto a família como a empresa em si são de fácil entendimento, neste contexto, não merecendo, no momento, mais explicações. O subsistema “propriedade”, por sua vez, representa as cotas da empresa, os acordos de acionistas, alguns órgãos de governança ,como conselhos de cotistas e assim por diante.
Dois elementos na representação dos três subsistemas da Empresa Familiar devem ser acrescentados. O primeiro é o homem, que está presente em cada subsistema. Ele é o responsável em dar vida às empresas. As máquinas não rodariam, as vendas não se realizariam, os acordos societários não seriam realizados / concretizados, e a própria família não seria constituída sem a presença dele. O segundo elemento é o dinheiro. Este permeia os subsistemas e flui por eles, como o mercúrio que vaza de um termômetro que quebra ao cair ao chão. Conhecemos várias definições sobre empresas. Quase sempre, elas terminam mencionando, “que o fim último das empresas é a geração de lucros”. E que vem a ser o lucro? Lucro é a sobra do resultado das operações de uma empresa, traduzido em valores monetário, ou seja, dinheiro. Podemos ter prejuízo, se gastamos mais do que recebemos e ficamos devendo, ou podemos ter lucro, quando, ao final do ano, nos sobra dinheiro. Portanto, todas as ações e decisões empreendidas nas empresas têm por fim último a sua sobrevivência, o que se traduz na geração de lucro. Sem lucro, as empresas estão fadadas a desaparecerem.
Temos, assim, estes dois elementos, o homem e o dinheiro, constantemente presentes nas empresas. Sem o primeiro a empresa não existiria e não conseguiria funcionar; sem o segundo, não conseguiria funcionar de forma adequada.
Apesar de dar vida e sobrevida à empresa, o homem e o dinheiro também são uma das grandes causas para o desaparecimento e o fechamento das Empresas Familiares. Basta olharmos para elas e observar quantos conflitos, muitos dos quais insolúveis, têm origem na discussão em torno do dinheiro. Podemos começar pelo “subsistema família”, analisando a nossa própria família ou a do vizinho ou a de um amigo, e tranquilamente elencar um rol de conflitos que surgiram por causa do dinheiro. Na empresa, quantos conflitos não surgem em função de gastos, precificação, investimentos mal direcionados e, sobretudo, em relação ao familiar que atua nela? Vamos analisar este último ponto mais adiante. No “subsistema propriedade”, discussões em torno de valorização de quotas, ou seja, quanto dinheiro elas valem, podem levar ao fechamento de uma empresa e assim por diante.
Em resumo, a convivência do homem com o dinheiro pode ser pacífica, levando a grandes resultados, ou destrutiva, gerando conflitos que aparecem por causa de dinheiro.
Ilustraremos, a seguir, algumas situações, no contexto das Empresas Familiares, em que o convívio entre o homem e o dinheiro não é pacífico.
Muitas vezes pais ou avós empreendedores têm a tendência de mimar os seus netos e filhos, ou com gordas mesadas ou com padrão de vida exagerado. Estes, acostumados com fartura e regalias, não aprendem a valorizar as coisas e não se conscientizam de quão árduas foram a luta e as dificuldades para que as famílias pudessem amealhar um patrimônio que permitisse a eles levar um padrão de vida, às vezes tão exagerado. Estes filhos e netos crescem e, quando adultos, formam os seus próprios núcleos familiares. Acostumados a um determinado padrão de vida e a regalias querem continuar mantendo-os. Mas de onde tirar os recursos? Será que a empresa consegue pagar honorários e distribuir dividendos suficientes para manter o padrão de vida das novas gerações? E os filhos e netos que buscarão outras atividades profissionais e que contam com dividendos da Empresa Familiar para manter o seu nível de vida, terão esses recursos assegurados? Surgem, neste contexto, inúmeros conflitos. Existe o perigo da descapitalização da Empresa, pois são retirados do negócio recursos que deveriam ser canalizados, por exemplo, para investimentos. É conhecido que as famílias crescem em proporção geométrica e as empresas, somente em proporção aritmética. A descapitalização traz grandes riscos ao negócio, podendo levar ao fechamento da Empresa Familiar ou à sua própria venda. Conhecemos casos em que famílias continuam a endividar os seus negócios para manter o seu nível de retirada. Muitas vezes, os patrimônios pessoais dos sócios das Empresas Familiares são muito grandes, mas não existe em geral, em nossa cultura, a propensão de se desfazer de um bem particular para capitalizar o próprio negócio.
Crises de ciúmes, semeadoras de conflitos, que também têm sua origem no subsistema familiar, podem ocorrer quando somente alguns familiares trabalham na empresa. Aqueles com outras atividades profissionais, muitas vezes menos bem-remunerados e eventualmente com menos status começam a ficar incomodados com os ganhos dos irmãos ou primos que trabalham no negócio familiar. Às vezes, cunhadas e cunhados são grandes incitadores de disputas e discórdias. Rupturas familiares podem acontecer e influenciar o andamento do negócio ou o futuro da Empresa Familiar, quando, um dia, parentes descontentes se tornarem efetivamente sócios da Empresa ao herdarem suas cotas no empreendimento familiar.
Conhecemos casos de separações litigiosas. Quantos ex-cônjuges ou ex-parceiros, magoados ou com sentimentos de rancor, não fazem de tudo para destruir o que é do outro ou abocanhar para si grandes somas de dinheiro como recompensa por uma separação. Estas situações podem levar à dilapidação e à destruição patrimonial. Empresas são fechadas ou passarão por enormes dificuldades, por causa do dinheiro exigido por uma das partes em onerosos embates judiciais. Na cegueira emocional causada pelo conflito, muitas vezes as partes não percebem que estão destruindo o patrimônio que deveria ser herdado pelos próprios filhos. Com isto, poderão estar destruindo o futuro deles.
Podemos igualmente enumerar algumas situações geradoras de conflitos e ligadas ao dinheiro, que emanam de outros subsistemas. Por exemplo, do ‘subsistema propriedade’.
Temos o caso da distribuição de dividendos, que gera muitos conflitos e desconfortos principalmente quando parte dos cotistas não trabalha na empresa. A visão sobre a distribuição do lucro é totalmente diferente para um parente que está no negócio e para aquele que não está. O primeiro sabe, por exemplo, o quanto a empresa precisa de recursos para investimentos futuros e formação de reservas para épocas de incertezas. O segundo tem sempre a crença de que a empresa tem muito dinheiro e a distribuição de dividendos poderia ser bem mais generosa. Este descompasso entre as visões dos cotistas pode interferir sobre decisões de investimentos, planos empresariais, e colocar em risco o futuro do negócio, sem falar nos conflitos familiares que podem surgir a partir dessa questão. Vale a pena acrescentar que, muitas vezes, a origem de um conflito se perpetuará entre os núcleos familiares. Se dois primos têm uma discórdia sobre a distribuição de lucros, as famílias de ambos transmitirão aos seus filhos estes sentimentos de antagonismo. Às vezes netos se encontrarão e colocarão, sobre a mesa, a pergunta do porquê deste conflito entre as famílias e descobrirão que há muito tempo não existe mais razão para que os descendentes se rivalizem. O relacionamento familiar, a partir deste momento, poderá voltar ao normal, trazendo paz e harmonia ao “subsistema familiar”.
Imaginemos uma Empresa Familiar que já está na geração dos netos do fundador. É a fase conhecida por “Consórcio de Primos”. A família é numerosa e as cotas estão distribuídas entre treze primos. Dois deles gostariam de se desfazer de seu patrimônio e vender a sua parte. Uma reunião é convocada para que o assunto seja tratado. Desde o início, aparecem as divergências e o conflito potencial, pois os primos divergem sobre o método de avaliação da empresa e sobre o quinhão que lhes pertence. Como continuar com o diálogo e chegar a um consenso entre todos? Mais uma vez, o valor, o dinheiro é o foco de um desentendimento em potencial.
À medida que a propriedade da Empresa Familiar passa de geração em geração, os herdeiros passarão a ter participação desigual na sociedade. Dois irmãos que fundaram a empresa, ao falecerem, deixam cada um a sua parte para os filhos. Um dos irmãos tem apenas um herdeiro. O outro tem quatro. Assim, um primo terá 50% das cotas do negócio e os outros terão apenas, 12,5%. Esta desigualdade poderá gerar sérios conflitos e situações de ciúme se a questão não for bem trabalhada a tempo, ou melhor, bem antes do falecimento dos irmãos que fundaram a empresa. A desigualdade patrimonial, refletida no valor que cada primo terá no negócio, será o foco de uma discórdia em potencial.
O “subsistema empresa” também é um terreno fértil para o surgimento de conflitos ligados ao dinheiro, refletindo no relacionamento familiar ou societário dos membros da família.
Muitos fundadores têm, para com os filhos, um “senso de justiça”, que é um grande gerador de conflitos. É muito mais comum do que se pensa a determinação, por parte dos empreendedores, de que todos os filhos que trabalham na empresa devem receber os mesmos salários. Não importa a responsabilidade, a autoridade e a complexidade das obrigações assumidas pelos filhos. Não serão elas que determinarão o valor do ganho, mas, sim, o que o empreendedor considera que os filhos deverão ganhar. A discórdia entre os irmãos aparecerá rapidamente, pois aquele que trabalha mais e tem mais responsabilidades se sentirá injustiçado. Por que o irmão que trabalha menos e não carrega tantas responsabilidades ganha no fim do mês o mesmo salário?
A remuneração de familiares pode gerar desconforto entre os demais funcionários da empresa, pois, em muitos casos, em funções equivalentes, os membros da família recebem mais que aqueles que não fazem parte dela. Este fato, também muito comum nas Empresas Familiares, gera um clima organizacional negativo e desmotivador. Surge a pergunta: quem deverá estabelecer a remuneração dos familiares? O departamento de Recursos Humanos ou o dono da empresa?
A utilização de cartões corporativos e cartões de créditos pessoais para gastos com a empresa e vice-versa pode se tornar rapidamente um grande foco de desconfiança e conflito entre parentes que trabalham na Empresa Familiar. É muito comum, membros da família utilizarem os mesmos cartões de crédito tanto para gastos particulares, como para gastos com a empresa. Geralmente existe uma grande dificuldade em tornar essas contas transparentes, gerando discussão e confusão. A falta de transparência, principalmente nas questões ligadas a dinheiro, é muito perniciosa, podendo dar origem a conflitos.
Caso semelhante, são as retiradas por conta. Os familiares que trabalham na empresa se utilizam muitas vezes desse expediente para retirarem dinheiro do caixa da empresa, para gastos ou investimentos pessoais. Numa futura distribuição de dividendos, as antecipações são descontadas. Este tratamento não é justo, perante outros membros da família que são cotistas e que não trabalham na empresa. Ao tomarem conhecimento desse expediente, em geral ficam ressabiados e desconfiados. Este é mais um aspecto em que o dinheiro pode levar a situações de conflito.
Pudemos dar alguns exemplos de como a questão do dinheiro e do valor afeta, de forma negativa, os subsistemas que constituem as Empresas Familiares. Ao longo do tempo foram surgindo mecanismos de Governança – que não serão discutidos no presente texto –, que puderam contribuir para minimizar os efeitos ou evitar de antemão o surgimento de conflitos ligados a assuntos de dinheiro. Sabemos de empresas japonesas e europeias que são muito longevas e que estão nas mãos de uma mesma família há mais de mil anos. Como elas conseguiram? De outro lado, ao redor do mundo, menos de 10% das Empresas Familiares continuam nas mãos dos bisnetos de seus fundadores, em grande parte devido aos conflitos em torno do dinheiro que conseguiram dizimar a capacidade de perpetuação dos negócios familiares. Estes foram vendidos ou simplesmente desapareceram. É pena que o homem, ao lidar com as questões de dinheiro, seja em grande parte responsável pelo grande insucesso das Empresas Familiares.

(*) Thomas Michael Lanz (www.thomaslanz.com.br), executivo com três décadas de vivência em empresas familiares como Mangels, Lafer, Carbex e Giroflex, teve a oportunidade, em sua carreira, de participar de Conselhos de empresas nacionais (Carbex – Indústrias Reunidas, Giroflex, Novelprint), estrangeiras (Weleda do Brasil, Firmenich do Brasil) e organizações do terceiro setor (Instituto Akatu para o Consumo Consciente, Sociedade de Cultura Artística).Como consultor, tem suas atividades voltadas principalmente para governança, sucessão e planejamento empresarial. Atua igualmente como “coach” em processos de consultoria. É palestrante convidado da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, Catho, Cultcorp, Canal Executivo e EDM, para assuntos ligados a empresas familiares. Membro da Vistage Brasil, do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa pelo qual é conselheiro certificado – e do FFI – Family Firm Institute – EUA. É formado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Mestre em Administração de Empresas pelo Insead (França).